-->

A bênção de ser pai

Publicidade
Natalino Salgado

Se, no domingo passado, discorri sobre a metáfora da igreja como mãe, nada mais oportuno do que dissertar hoje sobre a figura do pai, dada a ocasião propícia.

Quanto àqueles que - como eu - alcançaram a graça de já ter atravessado uma boa parte da vida, uma constatação é certa: pai envelhece, mas nunca morre. Os pais são o nosso primeiro modelo. Anos depois, experientes, calejados, muitas voltas dadas pelo mundo, parece que voltamos no tempo entendendo, percebendo as porções que nosso pai deixou em nós. Pegamo-nos repetindo falas, movimentos, para rir de nós mesmos pela imitação involuntária. Pai tem um lugar em nossa construção pessoal que, se ausente, deixará um vazio que só a muito custo se preenche. O lugar é espiritual, mental, emocional, físico. Estamos matizados pela sua lembrança, sua voz e pela sensação de que ele sim sabia tudo e como era bom descansar nessa doce ilusão.

Gosto muito da figura que Mário Quintana lembra em seu poema “As mãos de meu pai”, no qual discorre sobre a imagem inteira do homem, cujas mãos envelhecidas são prova de sua dura jornada no mundo e da qual ele, o poeta, era fruto. Em certo momento, Quintana desenha com palavras a imagem daquele homem sentado na cadeira de balanço com as mãos apoiadas, das quais emanam luz. As mãos que lhe guiaram, vibraram, fremiram, ficaram encaliçadas, enrugadas e depois débeis. Uma cena que ficou na mente do poeta e emociona com certeza tantos quantos tiveram a benção de ver seus próprios pais velhinhos.

Tenho comigo ainda um trecho do poema de Ivone Boechat, que vejo como se eu mesmo tivesse escrito: “O pai não morre / ele corre na frente / pra levantar o segredo do véu / e guardar pra gente / o lugar mais estrelado do céu”. Se, já amadurecidos, tivermos a bendita sorte de tê-lo, não na saudade, mas fisicamente, certamente nosso olhar de meninos e meninas já não será mais o mesmo, e assim o veremos redimensionado: ele, nessa condição, se torna humano, mas tão parecido a nós, que nos irmanamos também, especialmente se nos tornamos pais. Lembro ainda de outra bonita metáfora que foi produzida pelo padre Fábio de Melo, que, em sua famosa canção “Deus é pai”, chega a confundir seu próprio pai com Deus ao confirmar: “... Mas aquele homem não era Deus. Aquele homem era o meu pai. E foi assim que descobri que o meu pai, com seu jeito finito de ser deus, revelava-me Deus com seu jeito infinito de ser homem”.

A despeito das poesias que já comentei, evoco também uma das passagens bíblicas mais comentadas de todos os tempos, em que o amor de um pai pelo seu filho subverte qualquer lógica. Trata-se da conhecida parábola do filho pródigo, narrada no Evangelho de São Lucas (cap.15). É uma das histórias universais que contam o drama e a beleza dessa relação tão singular. Ao pedir a herança, é como se o filho mais jovem dissesse ao pai, face a face, que ele estava morto. Não há herança de pai vivo, ela é inegociável nesse sentido. Os estudiosos do Direito a isso chamam de pacta corvina. Contudo, de forma inacreditável, o pai cede ao desejo do filho. Este vai pelo mundo e gasta com todos os prazeres que seus olhos e corpo cobiçaram. Ao final de um tempo, estava pobre, mendigando a própria comida. Os amigos desapareceram. Estava só e maltrapilho num país estrangeiro. Foi humilhado num serviço que feria sua dignidade, história, cultura e religião. Desejava a comida que era dada aos porcos que vigiava. Ali, ele cai em si. Arrepende-se. Diz para si mesmo: “Voltarei para meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti, não sou mais digno de ser chamado teu filho. Trate-me como um dos teus empregados”. De onde aquele jovem retirou a confiança de obter perdão, mesmo na condição em que se inferiorizava?

O retorno é dramático. Um dia o filho pródigo, com roupas aos frangalhos, dentro da propriedade da família, aparece a uma certa distância. O pai, em algum posto de vigia, como se velasse pela vida do filho considerado perdido para sempre, mas que, ao mesmo tempo, teimava em crer que um dia o veria outra vez, avista aquele homem trôpego. Sem um segundo de dúvida, ele disse: “É meu filho!”. Arrebatado pela alegria, ele corre em direção ao filho e o alcança no caminho. Abraça e beija-o. O filho diz então as palavras que ao longo do caminho repetiu incontáveis vezes, antecipando as reações, preparado para o rechaço, para a recriminação e até, quem sabe, para o desprezo. Todavia o pai chama os empregados e pede que o ajudem. Manda lhe trazer roupas, ordena uma grande festa. Põe o anel de autoridade como o símbolo de sua restauração à posição de filho. É para o filho mais velho que este pai diz: como não haveríamos de nos alegrar? Este meu filho, teu irmão, estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. A história termina com essas palavras do pai. Elas ecoam e reverberam em cada pai até hoje, mesmo naqueles que a desconhecem. O próprio Deus se identifica com ela.

Mais que uma história de cunho religioso ou de ordem moral, descreve um tipo de amor que não pode ser medido por qualquer métrica. Relata a rebeldia que tantas vezes nos acomete na condição de filhos, revela o encontro que sempre começa quando uma das partes percebe que cometeu um grave erro. Segue-se a decisão de voltar no caminho percorrido, reconstruir-se em humildade, fazer o certo porque é bom e produz alegria.

A história fala de perdão, mas sobretudo de um amor sem limites, desses que um verdadeiro pai está sempre disposto a dar aos seus filhos. O próprio Deus encarna esse amor no dizer de São João, quando afirma que Aquele amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito para que todo aquele que Nele crê não morra, mas tenha a vida eterna.

A todos os pais, em especial ao meu - exemplo de dedicação, amor e cuidado -, eu desejo um dia dos pais abençoado e que recebam de Deus a graça de formar filhos felizes e realizados.

Nota do editor da Aldeia: Doutor em Nefrologia, reitor da UFMA, membro do IHGM, da AMM, AMC e AML O artigo é publicado simultaneamente com O Estado do Maranhão.
Advertisemen